sábado, 30 de outubro de 2010

Voto ou Ação Direta: Liberdade da Lei Áurea ou de Palmares

Vocês estão sendo enganados, bons eleitores,
vocês estão sendo ludibriados, eles os bajulam quando dizem que vocês são
a justiça, o direito, a soberania nacional, o povo-rei, homens livres.
Colhem seus votos e é tudo. Vocês não são mais do que frutas... bananas.
Zo d’Axa. “Aos eleitores”. 3 de maio de 1898. Mais um ano eleitoral
chegou. E, mais uma vez, lá estão os políticos. Nas ruas, nos jornais, nos
onipresentes “santinhos” ou na tela da televisão: prometem transformações,
vomitam slogans ridículos, dizem que “agora vai ser diferente”. No
entanto, passam as eleições e as coisas não mudam profundamente.
Escândalos de corrupção, elevados níveis de violência, precário sistema
público de saúde, falência da educação, repressão aos anseios camponeses
por reforma agrária, criminalização de movimentos sociais populares.
Mazelas e misérias historicamente construídas pelo modo capitalista de
viver e de organizar a sociedade. Se há mudanças mínimas, liberdades
duramente conquistadas e relativos alargamentos na “área da cela” na qual
sobrevivemos (como diria o anarquista Noam Chomsky) elas foram fruto da
pressão de movimentos organizados, do clamor das ruas. Movimentos que não
se contentaram em ser guiados pela pauta das casas legislativas. Ainda
que, a partir do século XVIII, a burguesia tenha se voltado contra o
absolutismo do Antigo Regime – em nome de “liberdade, igualdade e
fraternidade” – a noção de soberania popular foi se relativizando (e se
enfraquecendo) na medida em que o poder burguês foi consolidado. Uma vez
no comando, a burguesia não hesitou em limitar a participação popular a um
mínimo, utilizando-se de ferramentas tanto de repressão quanto de
convencimento. E, com muito custo, foi absorvendo em seu favor alguns dos
anseios das massas – sufrágio universal, participação da mulher, voto
secreto, etc. Atualmente, os elementos persuasivos são largamente
utilizados por um eficiente aparato de propaganda. O slogan governamental
decreta: “O destino do eleitor está em suas próprias mãos”. Assim, o
discurso oficial identifica o ato de votar (ou apertar botões, em sua
versão mais moderna) como o momento máximo de “cidadania”. Não se discutem
evidentemente, os limites desse modelo ou as formas de aumentar a
participação de todos em seus destinos, de modo efetivo. A eleição acaba
sempre sendo um bom negócio paras as elites. Uma das maiores armas das
oligarquias é justamente a desmobilização – que se amplifica ciclicamente
no ritual das urnas. A direita só clama por mobilização popular quando se
organiza com vistas ao retorno da “ordem” ou ao fascismo. Mas o fascismo
torna-se necessário apenas quando as ameaças parecem transbordar as urnas,
e as ameaças às estruturas do sistema só ocorrem com muita mobilização e
organização popular. A pseudodemocracia vigente adormece a possibilidade
de esclarecimento, de conscientização, de organização e de ação política
em seu sentido mais incisivo: o de atuar na pólis, na cidade, no bairro,
no cotidiano, a partir de organismos autônomos, horizontais, assembleias,
associações de bairro, conselhos de operários – ou quaisquer outras
definições do que, na essência, significa democracia direta. Os
anarquistas sempre estiveram atentos frente às estratégias mistificadoras
da democracia burguesa. Buscando fugir da ação política institucionalizada
– como diria Jaime Cubero, essa grande “arma burguesa de retardamento” da
democracia direta – a proposta anarquista caminha no sentido de estimular
a autonomia, o protagonismo dos cidadãos, a política feita de forma
direta; distinguem-se assim de outros setores da esquerda que apostam em
vias eleitorais. A participação nas eleições pelos partidos políticos de
esquerda nos mostra a problemática de usar meios inadequados para alcançar
certos fins. Há os que querem usar as eleições “apenas como propaganda”,
como se fosse possível competir com o aparelho burguês por seus próprios
mecanismos, sem caricaturar ou ridicularizar as propostas socialistas em
rede nacional! Outros dão ênfase apenas à questão tática da eleição,
argumentando que seria perfeitamente possível aliar a luta parlamentar às
estratégias de massas – a dos movimentos sociais. No entanto, percebe-se
que essa ação “inofensivamente” tática vai se tornando paulatinamente
“estratégica”, fazendo que estes grupos progressivamente deformem o
projeto original que defendiam. Estes vão ajustando lentamente seus
projetos aos meandros da democracia burguesa, dos gabinetes, das condições
legais, muito eficazes em anular projetos radicais. Não se trata de uma
questão substancialmente “moral” ou de “traição” – ainda que a imoralidade
e a mentira possam também fazer parte de todo o processo. Estamos falando
de um tipo de dinâmica que é própria da ação parlamentar: a ação
institucional vai solapando a ação de massas. O que era um projeto
“periférico” ganha cada vez mais contornos de “centro”. Nas novas
periferias geradas no processo, ficarão os movimentos sociais que esses
partidos hegemonizam ou influenciam (as suas “bases de apoio”). Os
parlamentares e mandatos “combativos” destes partidos de esquerda – já
encastelados como centros, ou seja, poderosos aglutinadores de recursos
financeiros e políticos – impõem assim o ritmo das lutas de fora para
dentro dos movimentos. O resultado é o pior possível: movimentos que ficam
subordinados aos limites da legalidade burguesa ou às figuras carismáticas
– a forma mais irracional de subordinação política. A elite sabe que, se
um candidato “radical” se candidata para contestar estas estruturas, é
possível aplicar a mais antiga das fórmulas democrático-burguesas: caso se
candidate que JAMAIS se eleja; caso se eleja garanta que não governe; e
caso governe... derrube-o! Nestas eleições, portanto, tanto faz votar
nulo, no “menos pior” ou não ir votar. O voto útil “contra a direita” e a
política cínica (ou ingênua) do “melhorismo” ignoram que os exploradores
já têm seus postos garantidos na estrutura de poder independente do
resultado das eleições: estão representados no BNDES, nos projetos das
empreiteiras, nos monopólios de comunicação, nas estruturas verticais de
trabalho e de organização e no extermínio da juventude pobre e negra pela
polícia. Um governo “mais à direita” pode reprimir mais os movimentos
sociais é verdade. Um “mais à esquerda”, pode ao invés de reprimi-los,
comprar ou cooptar os movimentos. Contudo, os prejuízos de ambas as
políticas são igualmente terríveis, se a primeira ataca mais os direitos
dos trabalhadores, a segunda os desarma completamente para defendê-los. Os
governos evidentemente mudam, e enquanto houver capitalismo, todos sabem
que isso não é nenhuma novidade. Deveríamos nos perguntar, não as
condições que desejamos para construir nossas lutas, mas sim, como podemos
impor nossas pautas – a dos movimentos sociais –, aos carniceiros, sejam
eles de direita ou de esquerda? Que tática e princípios nos servimos para
enfrentar a repressão ou a cooptação? Decerto não os removeremos destes
postos sem um intenso e árduo trabalho de organização popular que possua
fins revolucionários. Para isso, é necessário criar, fomentar e
desenvolver a autonomia da classe em seus próprios organismos;
fortalecermos um movimento de movimentos; criarmos um povo forte. Um povo
que não dependa de líderes, messias ou candidatos a super-heróis. É
somente pela base que construímos experiências concretas de organização
popular e assentamos as experiências de poder popular. Com a massificação
dos organismos populares e a generalização da democracia direta, poderemos
um dia ameaçar a ordem vigente e construir, nos mecanismos que levam à sua
ruptura, uma nova experiência político-social. Assim fizeram os comunnards
da Comuna de Paris em 1871; os trabalhadores espanhóis em 1936; os
operários e camponeses russos em 1905 e 1917. Assim fazem os zapatistas, e
assim fez o povo de Oaxaca em 2006, que, com suas assembleias populares,
expulsou o governo e a polícia da cidade e se autogeriu politicamente,
dando vida à Comuna de Oaxaca. Aqui vamos tentando, experimentando e
caminhando; mas tendo a certeza de que os caminhos da emancipação popular
definitivamente não passam pelas urnas. Se passassem – parafraseando um
velho ditado libertário – as eleições seriam obviamente proibidas. Outra
Campanha: Nossas urgências não cabem nas urnas! A Outra Campanha –
inspirada no exemplo de ação autônoma dos zapatistas mexicanos – busca
construir uma nova forma de fazer política, com base no protagonismo e na
luta popular. E, em vez de pedir o voto, incita a organização autônoma, a
formação de coletivos, a vontade de interferir no próprio destino. E, no
lugar de “santinhos” e slogans, quer: “autogestão, cooperativismo, ajuda
mútua, ação direta, ocupações, mobilizações, socialismo libertário, gestão
não-hierárquica, democracia direta, organização em grupos locais e
coletivos em federações, e reforma agrária coordenada pelos próprios
camponeses”. No Brasil, a Outra Campanha está sendo organizada por vários
grupos e conta com adesões nos estados do Alagoas, Rio Grande do Sul, Rio
de Janeiro, São Paulo, etc. Saiba mais sobre a Outra Campanha no site:
http://outracampanhabrasil.blogspot.com [1] Apud: VVAA. Os anarquistas e
as eleições. São Paulo: Imaginário, 2000. [i] O que leva a deformações
como assistir a partidos de esquerda falarem em rede nacional, de
“democracia direta”. [ii] Foi assim com o PT e com a maioria dos partidos
verdes da Europa, que, partindo de projetos gestados no interior dos
movimentos sociais, tornaram-se apenas geradores de quadros da nova
burocracia. [iii] Ou diríamos “a infantilização da política”? Uma projeção
da forma familiar paternalista-burguesa ao nível político? [iv] Cf. COUTO,
Evandro. Como Votam os Anarquistas? In Socialismo Libertário nº 18.
Publicado no LIBERA # 146

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